domingo, janeiro 21, 2007

Na noite do ventre. O Diamante


"O ritual repetia-se todas as sextas-feiras. Depois de limpar a casa - humilde casinha de madeira, semelhante a tantas outras daquela aldeia judaica do sul da Rússia -, depois de preparar a mesa para a festa do Shabat, colocando a toalha branca, a melhor louça, o candelabro com as velas festivas, Esther chamava a família, o marido Itzik, os filhos Guedali e Dudl. Era uma mulher de pequena estatura, gordinha (comer era coisa de que gostava), de gestos enérgicos. Na face, precocemente envelhecida, a expressão do sofrimento ancestral - e da férrea determinação - que herdara da mãe, e da avó, e de gerações de mulheres que, como ela, tinham se sacrificado por suas famílias, cozinhando, limpando, lavando, cuidando das crianças. Dia após dia sua rotina se resumia a isso. Mas a sexta-feira era diferente. Diferente por causa da festa do Shabat, claro, mas diferente sobretudo por causa da pequena encenação que o marido e os filhos conheciam, mas que presenciavam em tácito silêncio. Diante da mesa posta para a refeição festiva ela erguia a mão esquerda - mão escalavrada, desgastada pelo duro trabalho da casa - mostrava ao marido e aos filhos o anular: - Olhem este dedo. Olhem bem este dedo. Estão olhando este dedo? Estão olhando? Olhem. Olhem e me digam: o que é este dedo? Hein? O que é este dedo? Pausa dramática, e continuava: - Não é nada, este dedo. Este dedo não é nada. Nada. Sabem o que é nada? Sabem mesmo, ou imaginam que sabem? Nada é nada, nada é coisa nenhuma, nada é aquilo que não existe. Nada era o que existia antes de Deus criar o mundo. Nada: era só Deus e o nada, Deus olhando para o nada, Deus vendo o nada, Deus quieto - porque não dá para falar com o nada, o nada não ouve, o nada não responde. Este dedo é nada. Parece que existe, este dedo, vocês pensam que estão vendo um dedo, mas vocês não estão vendo dedo nenhum, este dedo que vocês pensam estar vendo não existe, este dedo é nada. É apenas um dedo da minha mão, um dos dez dedos destas mãos feias, maltratadas, estas mãos que só servem para limpar, para lavar, para esfregar, para cozinhar. Mãos feias como a dona, humildes como a dona. Nova pausa, e agora um sorriso: Na Noite do Ventre - Mas no Shabat, queridos, este dedo se transforma. E se transforma como por milagre. É um milagre, queridos, a gente pode dizer que é um verdadeiro milagre. Um dedo que era nada passa a existir, fica lindo, e faz a mão ficar linda, e faz uma pobre mulher ficar linda... Um milagre, sim. Querem ver? E aí vinha o momento mais emocionante de sua semana, o momento que ela aguardara com expectativa. Reverente, ansiosa mesmo, abria um antigo, puído saquitel de veludo azul que já estava sobre a mesa. De lá retirava um anel. Não chegava a ser uma jóia deslumbrante; um velho anel de ouro, de aro fino. Mas tinha incrustado um diamante, que fulgurava à luz das velas. Este anel ela lentamente, cuidadosamente, enfiava no anular. E então, anel no dedo, estendia o braço, mirava a mão, mostrava-a de novo ao marido, aos filhos: - Agora eu sou outra. Agora, sim, eu sou uma mulher. Uma mulher respeitável. Uma dama. Sou uma dama, sim. Ou vocês pensam que damas são só as mulheres dos ricos, dos nobres? Eu sou uma dama. Este diamante me transforma numa dama. Por isso, queridos, sou grata a esta pedra. Ela veio de longe, de muito longe, para me dar um pouco de alegria, um pouco de conforto. O marido e os filhos sabiam do que ela estava falando. Porque o diamante tinha uma história. Uma história muito antiga, que começava num lugar muito distante da Rússia, num país de lindas praias e montanhas verdejantes, um país belo, exótico, misterioso, um país do qual conheciam apenas o nome: Brasil. "(Trecho do 1° capítulo)