domingo, junho 11, 2006

Perto do Coração Selvagem


"Foi certamente movida pelo desejo urgente de sair de dentro de si mesma que Clarice escreveu "Perto do Coração Selvagem". Seu modo único de ver as coisas, sua extraordinária percepção de realidades e mundos à primeira vista invisíveis, sua liberdade feroz, faziam de Clarice uma mulher tão poderosa quanto solitária, condenada a viver num mundo fundado exclusivamente por ela e para ela. À semelhança da menina Joana, que emprestava sua identidade a cada um de seus brinquedos, Clarice, a jovem autora de Perto do coração Selvagem (à época com 23 anos) faz sua estréia na literatura emprestando sua voz a cada um de seus personagens. Não há diferença entre a voz da narradora e a voz de seus personagens. E quem era Joana? Difícil precisar, já que sua história não era tecida a partir de fatos, mas de sentimentos, imagens e idéias abstratas. Não havia sequer uma ordem cronológica na qual o leitor pudesse se apoiar: se no primeiro capítulo Joana era apenas uma criança, no capítulo seguinte já a encontramos adulta, para logo adiante tornarmos a encontrá-la menina. Difusa, Joana estava a todo tempo consumida por questões existenciais e métafísicas, sem contornos nítidos, sem história, destruturada e sem final. O que personaliza a obra de Clarice? A incapacidade de sair de dentro de si mesma, a presença de uma força afirmativa que se apropria de tudo o que está a sua volta, fazendo com que as coisas passem todas a pertencer à lógica de seu universo particular. Clarice inaugura um mundo diferente, onde as relações sociais movem-se na cadência de sensações e sentimentos. E é dessa surdez com relação ao outro que se constrói sua voz radical, independente, selvagem, absoluta. "Buscar a base do egoísmo: tudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é". Clarice selecionara em Retrato do Artista quando Jovem, de Joyce, uma frase que lhe parecera ideal para ser usada como epígrafe do livro: "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida". ("Era uma Vez: Eu", Lìcia Manzo)

Eu também tenho uma epígrafe para meu texto: “I believe that the nations can learn much from those Jews, their way of thinking, their way of bringing up children, their finding happiness where others see nothing but misery and humiliation.” Isaac Singer

Clarice: uma judia ucraniana, uma artista da linguagem.