Lucidez Embriagada
(Foto: Cartier Bresson)"Preciso fundar em mim a disciplina da fidelidade. Preciso aprender a ser fiel a mim mesmo, às verdades que me são reveladas e que eu busco, num certo sentido, esquecer e malcurar, pois nenhuma tarefa é tão pesada como a de pastorear o ser das coisas que a nós se revela. Preciso aprender a trabalhar, com método calmo e transparente amor. A revelação, a iluminação, nada mais representam do que o bloco de pedra a partir do qual se há de arrancar a escultura. Preciso aprender a tornar-me o escultor cotidiano, aquele que acorda e dorme a sua obra, no desfiar dos dias que se sucedem, com paciência e silenciosa paixão. Preciso pesar menos e obrar mais. Preciso ser menos eruptivo e mais fluente. Preciso fluir, manar, desdobrar-me, descobrir-me, preciso permitir que as águas venham da rocha profunda. Pois só na medida em que as águas surgem é que elas se renovam. Do fluir decorre a fluência. Não há fluência sem o fluir, da mesma forma como não há fonte sem a água que borbolha. A fonte é a água que borbulha, e mais nada. Não há portanto, fonte onde não há o fluir da água, onde não existe o seu brotar da pedra, frio e fresco. Estou certa de que só o criar alimenta e restaura a capacidade de criação. Não resta dúvida de que, às vezes, as coisas parece que nos são dadas por acréscimo, por superabundância, por graça. Mas estas coisas que são dadas de graça exigem de nós, depois, a paciente perseverança, o aturado e duradouro calor, capaz de transformar-nos nos guardiões da graça do ser que a nós se revelou. O preço da graça que recebemos é nos mantermos fiéis a ela, é nos tornar-mos os porta vozes dela, nos fazermos a voz dela, a linguagem dela. A graça quer acender ao mundo através da nossa boca que fala. Fala boca, para que te possas, depois, calar com dignidade. Fala, para mereceres o silêncio, que vem depois, como a noite vem depois do dia. Fala".
(Rio de Janeiro, 12/06/1962, Hélio Pellegrino, Lucidez Embriagada, pg.15)
