sábado, setembro 02, 2006

Lucian Freud

"O menor acontecimento desenrola-se como um destino, e o próprio destino se desdobra como um tecido, amplo e admirável, em que cada fio, conduzido por mão infinitamente suave é preso e mantido por cem outros. (...) Deixe que os seus julgamentos tenham a sua evolução natural, silenciosa. Não se oponha a esta evolução que, como todo o aperfeiçoamento, deve vir do amâgo do seu ser e não pode suportar coação nem pressa. (...) Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova luz. (...)Ser artista é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade.(...)Se se prender à natureza, ao que nela existe de simples e pequeno, àquilo que quase ninguém observa e que, de repente, se metamorfoseia no infinitamente grande, no incomensurável- se estender o seu amor a tudo que vive- se humildemente tentar ganhar a confiança do que lhe parece mesquinho- então tudo lhe será mais fácil, tudo lhe parecerá mais harmonioso e, por assim dizer, mais repousante. (...) Os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu afeto. "
(Poemas e Cartas a um Jovem Poeta- Rilke)

Fui à feira do livro, já a terceira vez que compareço ao evento, ficando extasiada com tantos livros baratos. Cada livro para mim é repleto de histórias, nenhum se perde, se o compro, há dentro dele algo que encontro de minha própria tragetória. Viver é buscar suas origens, como Rilke enfatiza em um poema " Caos selvagem, Bosque antiquíssimo". Dentro de cada um de nós há um bosque a ser desvendado, algo infinitamente maior do que o tempo que vivemos, e nem ao menos chegamos a sua essência. Mas a procuramos, ávidos de grandes mistérios. E o sobrenatural como que surge e nos resgata. Algo tão simples, mas que me transporta para um universo tão amplo. O fato de colocar a figura de Lucian Freud é falar um pouco do que me acontece, do que me habita no momento.

"Iniciação"

Quem quer que sejas: deixa tua alcova,
dá qual já sabes tudo que desejas,
Teu lar na tarde, longe, se renova,
quem quer que sejas.

Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto,
posto ante o céu- esguio, singular.

E tens já pronto o mundo: estranho assim
Como palavra que amadurecesse
no silêncio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim...

John Currin

Tragicômico. Seria uma forma de definir John Currin. Com figuras caricaturais, a pintura do artista leva a sentimentos ambíguos sobre o horror do que vemos, corpos destituídos de perfeição, deformidades nos membros. Será que devemos rir? Há uma desarmonia, uma sensação de ironia, assombro, terror. O que nos leva a rir do que não entendemos? Penso que, talvez, a não- compreensão seja enfim uma dádiva. A falta faz o caminho mais longo, sem a completude, a complexidade nos guia. No entanto, o já feito, já concluído, nos deixa estáticos, como que plenos. Essa sensação de que nada precisa ser somado, como se todos os tijolos já estivessem no lugar, as parede lixadas, a pintura impecável, ou seja, a perfeição da casa, acaba nos levando à uma posição sofrível de espectadores infecundos. Se pelo menos o jardim tivesse que ser regado, se ao menos a porta precisasse de concerto, eu existiria. Se tenho apenas que sentar no sofá confortável e contemplar a mansão que me deram, minhas mãos ficam paradas, como que mortas diante de tanta abundância. Talvez me contratassem para uma melhor decoração, talvez precisassem de uma consultoria para que os quadros nas paredes combinassem melhor com a mobília. Finalmente, a incompletude acaba sendo o melhor acabamento de que nossa alma precisa para se desenvolver, talvez, o que nos falta, seja o que precisamos. Trata-se do absurdo de querer, e quando nos é dado, recusarmos como que fartos. Dá-me comida, mas aos poucos. Dá-me beleza, mas que ela seja vista como o que me completa, que não seja por demais leviana, que não seja vulgar, que seja uma dualidade que me faça pensar, que seja um momento de reflexão, aí eu a quero, a desejo mais do que tudo. Tudo que é inefável é melhor, o impossível me é caro, e o caminho até ele me deixa perplexa.