sábado, outubro 29, 2005

Hell (minha crítica a esse livro francês sobre jovens ricos contemporâneos)


Um livro autobiográfico de uma garota francesa, por sinal, milionária. Reflete valores da sociedade pós-moderna. Uma vacuidade gritante, um vazio que não se preenche com a materialidade e o consumismo. A vida subjetiva da personagem é o seu principal foco no livro. O livro é essencialmente a história de jovens infelizes em um mundo incapaz de consolá-los. Jovens ricos, famosos, endinheirados, nada lhes falta, quer dizer, o que lhes falta é um ideal, tudo, todos os desejos foram realizados, para que viver? A vida é uma luta constante por sobrevivência para milhões de pessoas, mas para esse particular universo em Paris, a vida é uma sucessão de artificialidades que não levam a lugar nenhum, só a imensa vontade de não pensar em nada. A excitabilidade constante é a meta desses jovens que fazem de tudo para viver freneticamente nas aparências de suas marcas, algo comentado repetidamente por Lolita. No entanto, apesar de Lolita fazer parte desse sofisticado mundo, ela gera uma reflexão sofrível sobre a tristeza que a esmaga, apesar de sua constante luta por felicidade. O livro exerce seu papel essencial de denúncia e retrata a juventude rica como um barco afundando cada vez mais em um mar sem peixes, ou seja, sem vida. Eles afogam suas mágoas em bebedeiras infindáveis, em dissimulações impressionantes, em drogas ilícitas e extraordinariamente inebriantes, em sexo promíscuo e na carnalidade sem futuro. Lolita parece dialogar com o leitor, tentando adivinhar suas idéias a respeito desse mundo, afinal quem não pertence a ele não tem idéia da falsidade indiferente e cruel em que está imbuído. Se alguém pensa que por ter dinheiro, freqüentar os melhores lugares, ser bonita e aparentemente saudável, viajar o mundo, é a vida dos sonhos, poderia repensar essa questão após ver que o mais importante falta a esses jovens, são jovens sem rumo, perdidos, impotentes, passivos, reprodutores de comportamentos que a cultura os impõe, não refletem em suas ações, não dão a mínima aos bons modos, jogam pelos ares oportunidades, suas pretensões são módicas e ridículas, se resumem a comprar roupas em butiques famosas, andar em carros caríssimos, namorar rapazes cortejados, usar drogas constantemente e esquecerem de qual o sentido disso tudo.
Melissa Panarello (Cem escovadas antes de ir para cama) é uma jovem siciliana. Ela difere de Lolita por ser um pouco mais reservada, e falar não de sentimentos de seus amigos, mas os dela própria. Ela cria um mundo interior muito rico quando resolve escrever um diário contando as suas repetidas frustrações em busca de um amor idealizado. Essa jovem tem 15 anos, e ainda não encontrou qual o seu ideal. É alguém em busca desenfreada por prazer. Aliás, um tema a ser discutido: o hedonismo. O prazer imediato parece ser o seu lema. Não qualquer prazer, mas o prazer essencialmente carnal. O importante a se observar nesse livro é a relação de Melissa com seus diversos pretendentes e amantes, como é a subjetivação de suas experiências emocionais com esses homens que ela sabe intuitivamente que não a amam e nunca amarão? Qual o universo simbólico criado por Melissa para descrever seus pontos fracos, suas dores, suas alegrias? O respeito ao seu corpo é algo que ela fala muito. A beleza, a ternura, a inocência, o descobrimento do outro, os pensamentos ilusórios, cultivados repetidamente a cada experiência. Seus sonhos, seus anseios, sua linguagem. É importante ver como paulatinamente Melissa perde seu ar de menina e imerge em mundo que despreza. Melissa e Lolita tem em comum essa particular intuição de que o sofrimento bate a porta, cabe a elas não atenderem aos inevitáveis pedidos, no entanto, elas parecem gostar da flagelação como se encontrassem aí a materialidade, não querem o invisível, um sentimento abstrato, querem o concreto, o toque, os sentidos. O sentir, o amor a flor da pele. Porque Lolita e Melissa escolhem o caminho do sofrimento?

O conto do Camaleão


Havia um certo lugar bem longe de tudo que se conhece, de tudo que alguém pudesse um dia imaginar. Dentro dele estava a mais bela floresta que poderia um dia existir. As árvores eram gigantes, as flores luminosas, as folhas espalhavam-se pelo chão. Ali poderia haver um cenário fantástico para que uma história pudesse ser concebida. Uma história de amor, de aventura, de desejo. Dizia-se que os deuses habitavam ali, também haviam seres extraordinários que brincavam por entre a vegetação. Seres alados, pareciam borboletas, pássaros com aparência humana. Uma característica comum a esses seres eram suas cores. Todas sem exceção coloriam-se com variações surpreendentes, amarelo, vermelho, azul. Tudo combinava com o céu cheio de nuvens formando figuras divinas. O sol interpunha-se por entre elas e as faixas de luz eram mais um elemento da paisagem. Um ser chamado Borboleta-moleca dançava ao som da alvorada, dos cantos vindos de algum lugar daquela terra, um som melodioso, que exaltava o espírito. A música movimentava as folhas, o ar soprava.
A história a ser contada era a de um camaleão que habitava as frestas. O camaleão sabendo ser um agente secreto, mudando de cor o tempo todo, camuflavava-se. Mas surpreendentemente houve uma cor que não conhecia, não poderia então transmutar-se nela. Como esconder-se se aquela cor era tão diferente? Por mais que tentasse não conseguia. Começou a suar, estava chegando ao desespero quando o pássaro do paraíso o interrogou: Porque se sente assim camaleão? Respondendo o camaleão disse: Até agora sempre fui um exímio falseador, me transmutava, me transformava, sempre fui capaz de me adaptar nas mais diversas situações, sempre me escondendo dos predadores, sempre fugindo de situações. Mas hoje, por incrível que pareça, essa minha habilidade não me serviu, pois a cor que agora vejo é desconhecida, ela é diferente do azul, do amarelo, do vermelho e de todas que até hoje foram o meu disfarce. Agora estou nu de corpo e alma, essa cor me venceu. Não posso fugir dela, ela resplandeceu sobre mim sua fúria, ela quer me maltratar. Então o pássaro paciente e sábio respondeu: Não camaleão, você está enganado. Essa cor é conhecida por você, é a cor com que você nasceu, aquela que você já não se lembra mais. È a cor mais viva que existe pois ela é a verdade. Você não mais a reconhece como parte de você porque você acostumou-se com as outras cores que fingiam ser suas aliadas na luta pela vida. Mas hoje, você como por um encanto, por um breve momento lembrou-se de seu ser verdadeiro, da sua essência. O camaleão em lágrimas disse: “você está certo oh pássaro sábio e bom, eu havia me esquecido de que essa cor é aquela que minha mãe me concedeu, agora vejo com clareza que preciso entender o que ela quer me dizer, talvez seja que eu fugindo dela desde que aprendi a me transmutar só estava fugindo de mim mesmo. Agora prometo, mesmo que as outras cores ainda sejam minha arma de sobrevivência, entrar em contato comigo mesmo, parar algumas vezes e saber o que eu sou.

Coreografia de sons


A dança tem espaço privilegiado no que chamo de “meu gosto pelas artes”. Nesse espetáculo em particular, coreografia de sons, o grupo Quasar surpreende o público dançando ao som de músicas regionais nordestinas, além de “incorporar” falas de personagens que fazem parte dessa cultura riquíssima. Os dançarinos como que sugam do ar os sons que entram em seus corpos dando-lhes vida. O intuito é de mostrar a música em imagens. Dançar é uma forma de esvaziamento, de perder-se, entregar-se, sonegar-se, uma encarnação da música que do ar transforma-se em movimento visível, é não somente uma experiência sonora, é muito mais que isso, pode-se dizer que é enriquecimento da visão, de todos os outros sentidos. A arte salva, é como ser levado vagarosamente à essência, ao belo, ao novo. A dança contemporânea apresenta ao público o ser humano em busca da perfeição, da sincronicidade, de significados. Essa arte é uma mostra de criatividade, experiência e sobretudo vontade de gerar reflexões sobre o espaço cultural e o que ele tem para nos oferecer. Criando esses universos inusitados, sensibiliza-se o público mostrando-lhes a importância da música no Brasil e na vida de muitos que sobrevivem por meio dela transformando a realidade dura em prazer e paixão.

Antes do pôr do sol


Um filme que gostaria de assistir: Antes do por do sol. Trata-se de uma continuação do filme “ antes do amanhecer”, esse é relativamente antigo pois feito em 1995. Um filme que trata as relações amorosas de forma racional, sem exacerbação. O casal que não se vê durante anos acaba por se encontrar em um momento existencial distinto daquele em que se encontraram pela primeira vez. Os dois ainda jovens conheceram-se em um trem e passaram um dia inteiro juntos, ao final, marcaram para se encontrarem após seis meses o que acaba não acontecendo. Os dois encontram-se após alguns anos. O que chama a atenção para o filme são os diálogos que foram muito bem delineados. Naquele momento as ilusões juvenis já não tem espaço, e a relação certamente terá delineamentos mais complexos. O interessante do filme é que ele é feito por um diretor de cinema alternativo. Os diálogos são longos e não há tantos cortes. È um filme que tem uma perspectiva realística do romance, com todos os seus entraves que o tempo faz aparecer. Os filmes românticos são histórias de encontros e desencontros entre amantes, e muitas vezes parecem repetir fórmulas. Muitos soam ridículos e nem um pouco imaginativos. Gosto da perspectiva realista, é claro que idealismos a parte, sabemos que as situações amorosas vão construindo-se no tempo, e sabemos que o tempo encarrega-se de um amadurecimento dos personagens, tornando- mais crus, mais propensos a defesas do que antes, em que de alma leve, sonhavam com futuros esplêndidos. É claro que viver é fazer planos para o amanhã, mas quando os anos passam, há uma imprevisibilidade assustadora que não deixa a visão ser tão abrangente como antes. Sonha-se mais realisticamente.

Fale com Ela


Excelente filme que trata da suavidade e mistério na vida das mulheres. Essas que aparecem mudas no filme, são as protagonistas de uma história recheada de bondades inominadas. Dois homens que tentando a comunicação amam suas mulheres cada um da forma como conseguem. O enfermeiro que durante quatro anos se desfaz em carinhos e cuidados por sua amada em coma. Ela ali, imóvel, como um bebê, como uma boneca sem vida, ele ali, a amando sem sacrifício, lava seus cabelos, faz massagem em suas pernas, faz tudo para que ela continue com sua dignidade de ser humano. Ele conversa com ela como se ela estivesse totalmente atenta à sua fala. A música é algo especial no filme, algo que traz uma atmosfera de emotividade profunda. As conotações e metáforas mostram um mundo oculto feminino, o que as mulheres querem? Querem ser amadas, ouvidas, sentirem-se úteis. Elas querem esse amor incondicional, esse amor dado de uma forma prazerosa, uma forma muito além do ordinário. As mulheres existem para serem amadas. É assim que se resume um filme de uma sensibilidade sobrecomum em nossa época que insiste em tratar as mulheres muito menos como sujeito, sem dar a elas a honra de ser essa figura que ininteligível é muito mais do que o corpo, muito mais do que o físico, ela é essencialmente emoção a flor da pele, sonhos e desejos de felicidade. Ela é movida pela imaginação, pela poesia pela música. Esse filme exalta a beleza feminina de forma lúdica e inteligente. Traz a tona sentimentos que infiltram-se nos homens tornando-os mais cientes das relações que devem travar uns com os outros.

Encantadora de Baleias


Assisti a um filme lindo “Encantadora de baleias”, é um filme da Nova Zelândia sobre a cultura Maori. Uma menina tenta convencer seu avô de que é a líder escolhida para comandar as baleias, embora seu avô carrancudo e tradicional não acredite nos dons sobrenaturais da neta. O que me chama atenção no filme é seu cenário de encantamento, o lugar é maravilhoso.
Quando o avô começa a ensinar aos meninos os princípios de sua cultura milenar, parece querer reviver seu passado, acreditando em um futuro incerto. A força com que acredita em seus princípios, mostra como a tradição e a cultura podem conceder um novo significado a um povo que parece apático e e privado de um destino glorioso. Os mitos, cantos e gestuais introduzidos na trama do filme dão a sensação de que o povo é mais do que apenas alguns indivíduos juntos vivendo sem maiores pretensões, ele transforma-se em algo maior, comandado pelo invisível e extraordinário reino das baleias, figuras enormes, com seu canto que parece transcender a voz humana. Os cantos são passados de geração a geração, exaltando o desconhecido.

O sentimento de pertencer





O sentimento de pertencer. É algo que não se tem ao acaso. É necessário um nascimento em algum lugar especial. Praga, Sicília, Veneza. Três cidades que não conheço, então não faço parte delas. Estão distantes, o que posso é ler sobre elas e pensar um dia conhecê-las quase como uma vontade sonâmbula. Falar dessas cidades ,portanto, é uma difícil tarefa, tarefa que se prolonga quando faltam as palavras certas. O sentimento que quero definir não tem nome. È o sentido que a terra onde nascemos tem para nós. Nasci em Brasília. Mas a verdade é que não faço parte dela, não a desfruto por inteiro, não a tenho em sua totalidade, ela é imperiosa e acaba por soberbamente elevar-se acima de seus habitantes. Nenhum ser a alcança por mais que tente. Ela está inteiramente sozinha no meio do que chamaria de mar arenoso. Cidade refletindo a estética adequada: o moderno absorveu consigo a humanidade, ou o que ela teria significado um dia. Na ânsia de si manter altaneira, livrou-se de suas imperfeições e aboliu os rios pequenos. Voltou-se para si com total despojamento ignorando o que a faz viver. Seus habitantes sentem-se morando em uma terra que não é sua e sim de algum projetista esteticamente exilado, que quis uma terra só dele, mas que desprezou os outros. A natureza é dadivosa, consegue preencher os lugares vazios que transpassam o passante em Brasília e o fazem sentir-se pequeno. Há um inconformismo por minha parte em relação a esse império eterno, gosto dele, sinto-o em seus aspectos iluminados, mas mesmo assim ele subjulga a minha existência e me faz lembrar que a liberdade é um sonho triste.

Fotografia


Fotografia, essa imobilidade revestida de arte. A fotografia é basicamente memória, ela é auto-realidade. Os momentos catalogados ficam todos guardados nas prateleiras, eles serão recordados quando as lembranças voltarem junto a nostalgia de um tempo já vivido, já experimentado. Essa imobilidade dá a fotografia um sentimento dificilmente expresso. Ela é um enigma. Para ser um bom fotógrafo dizem ser importante treinar o olhar, é claro que todos podem fotografar, mas nem todos encaram isso como arte. O bom fotógrafo sabe captar o essencial nas cenas, ele quer provocar mais do que apenas a recordação, ele deseja uma reflexão. Ele fotografa com o intuito de imortalizar imagens, mas essas não devem ser superficiais, com gestos já ensaiados, como se todos fossem estátuas risonhas. Ele quer captar o momento de descontração. Além disso a natureza pode revertir-se de mil cores diferentes, todas novas. Os animais tornam-se exóticos e mostram a maravilha do mundo. O mais bonito é a fotografia etnográfica, ela demonstra a cultura de povos pouco conhecidos, e que se mostram por meio dessa arte, seus costumes, seu modo de enxergar o mundo. Essa subjetividade é o que torna o artista um gênio criador de novos espaços de fantasia, além de ser ele delator de uma realidade pouco exposta, ele torna-se também um fabricante de sonhos. A fotografia digital tira um pouco da prática mais manual, mais vagarosa, que tornava a fotografia ainda mais uma arte. Diz-se que a preto e branco tem estado em voga, pois no espaço contemporâneo as cores parecem não mostrar o essencial, e como o procuram, a fotografia em preto e branco parece de uma estética adequada a esse objetivo, já que mostra nuances mais sofisticadas, em que a luz tem um papel principal.

Inspirações Repentinas


Estar vivendo é visivelmente sem sentido. No entanto, o sentido pode ser vencido pelas formas inusitadas que o mundo toma quando oferece bondades imprevistas. Esses paraísos terrenos são apenas momentos, vislumbres de uma eternidade que a Terra não concede aos seus habitantes. São sonhos sonhados com suor, mundos criados de memória, riso e lágrimas. Esse memorialismo circunscreve as páginas da história de dois amantes. Movidos por lembranças de dias anteriores, cada momento é novo e ao mesmo tempo uma quase repetição dos precedentes. Não há dúvida de que nada é por acaso, só quem tem alguma idade pode entender que as coisas que não tem sentido no presente, farão toda a diferença no futuro. Os sentidos ultrapassam o entendimento que se quer dos acontecimentos. Como uma teia formada atentamente por uma aranha, como sementes que crescendo tornam-se frondosas árvores em jardins particulares, como uma nova vida a formar-se no ventre de uma mulher, os sentidos formam-se sozinhos. O crescimento do minúsculo vai formando modelos do futuro, e o acabamento é minuciosa, delicada e monotonamente secreto, entre um crepúsculo e outro, entre um amanhecer e um anoitecer. A luz é tão forte que tira a compreensão, os olhos fecham-se repentinamente e a visão é pequena para a imensidão do mundo.

Isabelle Huppert (Sou sua fã incondicional)


Assisti hoje um documentário sobre uma atriz francesa. Ela estava falando sobre atuar no teatro e cinema. Achei um documentário de beleza extraordinária, gosto da arte de atuar, de mostrar-se em sentimentos. Gosto da palavra “despojamento”,entregar-se completamente a uma tarefa e dificilmente sair dali ileso. Ela representava “Medéia” uma peça que exige grande força dramática. Ela encenaria sozinha, parecia um monólogo. Ela disse: Eu sou a prova de que o nada existe”. Parecem falas de Clarice, ela também dizia isso: o nada, o neutro, o disforme. A alma formando-se dolorosamente e sem saber para onde ir. Algo que virá a luz muito depois. Ela encenou filmes famosos como “ A professora de piano”, interpreta papéis difíceis, que exigem grande técnica. Ela disse: “ O ator desaparece em seus papéis, é aparecer para desaparecer”. È verdade, o ator mostra-se descaradamente nas telas, mas esconde-se simultaneamente. Quem ele é? Como é um ser sem contornos definidos, a câmara parece dar a ele a personalidade que almeja, parece que após o enfoque da câmara, depois que todas as atenções voltaram-se para ela, quando há o desligar da câmara, quem sou eu? Ela é uma pessoa extremamente delicada, visivelmente profunda, uma profissional maravilhosa. Parece que se a tocarmos ela pode desmoronar, desmontar, de tão maleável. Gosto de pessoas que importam-se em descobrir a essência das coisas. O olhar superficial é aquele olhar amorfo, sem vivacidade, amortecido. O olhar cotidiano não me interessa, interessa-me o olhar que se lança na estranheza do mundo e não se conforma em apenas ver, mas tenta dar forma, tenta dar sentido e significado a uma existência que precede a essência. Ser o dono de si não é ser dono do mundo, não é a grande luxúria de estar vivo. Ser dono de si é acima de tudo respeitar-se além dos outros, saber seus limites, não ultrapassa-los, pois sabe-se que se for além do que se quer, pode-se ir além do que se busca.

Hans Christian Andersen


Hans Christian Andersen escreveu contos de fadas, essas histórias extraordinárias que contava foram de certa forma autobiográficas, um ato de exorcismo, um auto relato de sua vida. Ele era um menino pobre, órfão, discriminado, precisando urgentemente de ajuda. Uma historia que aprecio muito é aquela da polergazinha. Porque será?Uma menina do tamanho de um polegar vive feliz da vida dentro de uma tulipa vermelha. Até que uma sapa feia seqüestra a menininha para que se casasse com seu filho, um sapo também feio. Ela consegue fugir, com a ajuda de seus amigos peixes e passa por muitas aventuras até chegar a um povoado com outras criaturinhas de seu tamanho. Quando criança eu adorava essa história. Certamente porque a polergazinha estava exilada, encontrava-se longe de seu povoado, nem sabia que fazia parte de um mundo que existia, um mundo que ela sonhara. Passa por maus bocados, aventuras, até encontrar a sua verdadeira casa. Viver em uma tulipa? Porque ela viveria ali? Era um lugar aconchegante, era bonito viver dentro de uma flor, como se essa flor fosse o seu abrigo, seu refúgio de um mundo que não era dela. Quando finalmente avista criaturas de seu tamanho, vivendo também como ela. È inacreditável, uma surpresa sobremodo maravilhosa para alguém que vivia em sua tulipa, pensando ser a única que pensava daquela forma, ou sonhava com um mundo diferente.
Essa é a busca incessante de todos, em busca de uma identidade que se auto realize. Meu mundo ideal seria após aprender muito sobre literatura, entrar nesse mundo fantástico que admiro desde sempre, conhecer outros polegarzinhos inseridos nesse universo particular, esse lugar de descrições e histórias, esse mundo romanceado, como um livro aberto pronto para ser lido. Esse seria o lugar de uma polegarzinha como eu. Inspirada para a escrita, fantasiando sempre, Wishfull thinking, um pensamento desejável, uma fonte inesgotável. As histórias estão prontas para ser contadas, elas estão sempre lá, como um espetáculo esperando ansiosamente para ser descoberto e abençoar com aventuras inimagináveis a opacidade da vida. Jogue o real às favas, O real é o impossível! Diria um poeta sábio!

A Vila (impressões sobre esse filme maravilhoso)


Moradores de uma misteriosa vila tentam isolar-se do mundo real a fim de manter a inocência de seus membros imaculada, além de livrar-se dos sofrimentos inevitáveis de quem vive em grandes cidades expostos a perigos constantemente, evitar a morte e as assombrações de um mundo em mudança frenética. Os habitantes da vila mantêm com grande sacrifício um modo de vida rústico, simples, desprovido de regalias. Um membro em especial é criticado por manter-se calado, quase não fala, em uma cena inusitada um morador o adverte: “Não adianta fugir dos sofrimentos, um dia eles o alcançarão”. O que ele quis dizer é que a perda da inocência é inevitável, a finitude e a morte alcançam mais cedo ou mais tarde a todos. È louvável a vontade de livrar-se do modo de vida contemporâneo e buscar conforto isolando-se. No entanto, a vila é uma mentira mantida por meio do mito criado por seus anciãos que governam a vila com mão de ferro. Mesmo sendo aconchegante viver ali, é claustrofóbico, limitado e ilusório. È como se buscassem o alívio em um local mágico. A pureza é conservada no romance, nas festas, na amizade, mas viver assim é uma fantasia irrealizável. Ao mesmo tempo que conseguem parcialmente manter a vila funcionando como previsto, os habitantes são enganados, ou seja, não sabem que existe um mundo atrás das florestas, temem-na por seus monstros. O medo apodera-se do ambiente e faz aqueles membros os mais covardes. Se não desenvolvemos nossas armas de sobrevivência tornamo-nos facilmente manipuláveis. Simultaneamente ao mundo visivelmente protegido como uma redoma de vidro, o preço é muito alto quando a verdade vem à tona. Viver por meio de subterfúgios como esse acaba criando uma desconfiança generalizada e algo escondido, coisas misteriosas são como mentiras bem contadas mas que limitam a visão. Uma moradora é cega, demonstrando a cegueira de se pensar acima dos poderes do mundo, a cegueira de ter medo do desconhecido, a cegueira de se manter intocável. Os filmes contemporâneos tentam recriar um mundo já extinto nos dando uma grande nostalgia dos tempos remotos, tempos que nem ao menos vivemos, tempos que imaginamos ter sido melhores do que hoje. Como não podemos fugir, ficamos exilados na incomunicabilidade que nossa época cultiva, vivemos como que por um fio já que as instabilidades nos assaltam, a segurança de tempos que nos dão saudade foi assaltada pela liberdade ilimitada que ao oferecer tudo que desejamos nos priva do raciocínio e exageramos na medida, temos saudade do tempo em que o romance entre um homem e uma mulher era sagrado, temos saudade de rituais que talvez nunca existiram mas que certamente davam um significado a mais em existências que não viam sentido. Temos saudade da inocência das crianças que atualmente parecem adultos precoces, temos saudade de quando as conversas não eram competições, onde a paz não era um sentimento raro, a complexidade de nossa época nos mastiga lentamente com doses altas de solidão e se não tivermos cuidado ela nos engolirá sem prévio aviso e nos levará para um tempo que a saudade será nosso único refúgio.

Oscilações de um tempo inoportuno


Pensando em um provável título para o meu livro inaugural (se é que ele existirá um dia, o que proponho é ir contra o natural) subitamente uma frase estranhamente familiar: “Oscilações de um tempo inoportuno”. O que essa particular intuição de algo a ser afirmado pode dizer-me no presente? Talvez o óbvio: o presente que experimento tem um sabor amargo na boca e por isso pensei no tempo: história. Essa da minha vida e dos que me rodeiam. Oscilações são desequilíbrios primários. Como a frase que li: viver é equilibrar-se no instável”. Equilibrar-se no limiar de uma catástrofe, me pergunto: será possível? O título parece ser um retrato legítimo de uma época pouco amistosa. Então é essa a decisão que tomo: escrever um livro com base em um título surgido quando estava olhando para fora da janela do ônibus voltando para casa? O que isso quer me dizer? Segundo um escritor judeu envolto a misticismos e histórias de mistério de seu povo da Polônia, Isaac Singer, em uma entrevista que vale a pena ser lida e relida, fala sobre suas convicções, o que aprendeu, suas opiniões certamente tem um fundo de verdade e devem ser levadas em conta, afinal, ele ganhou o prêmio Nobel de literatura. O que aprender: parece existir uma missão para cada obra criada, para cada livro escrito. Cada livro tem algo de essencial a ser revelado, se não para essa geração, para as posteriores, talvez as que irão existir um dia. Nada escorre no ralo sem ter feito a limpeza para qual estava designado, nada desaparece sem que tenha cumprido sua tarefa. Se a morte existe no corpo, ela não existe para as palavras escritas, essas prosseguirão nas mãos daqueles que famintos por idéias, as utilizarem, e assim, sonharão com um tempo já extinto, mas que o passado não conseguiu dissolver por completo. Uma escritora por quem tenho predileção especial, pensou que escrevia para salvar a vida de alguém. Não acho que esse pensamento seja desconcertante, o acho totalmente verossímil, tenho certeza que seus escritos salvaram muitas pessoas, inclusive a minha. Em um artigo que li, o escritor dizia que quem escreve troca a vida pelas palavras. Concordo plenamente com ele: há vida nas palavras pois elas retratam o mundo e fazem interpretações sobre ele, fazem um retrato que dá sentido a experiências que se não impressas, voam para um tempo distante e se perdem no infinito.
Singer, esse escritor que descobri de forma que pareceu ocasional, mas não foi. Um livro que quero ansiosamente. Entrar na cultura judaica parece ser um objetivo claro para mim. Quero conhecê-la mais a fundo, esse povo parece ter muito a dizer. Singer fala que temos que tomar decisões. Mas não apenas toma-las mas mantê-las. Nunca devemos relaxar ou deixar de tentar, se não mantermos nossas decisões, não seremos bem sucedidos. Isso me pareceu de um valor inestimável. È necessário levar a sério nossas decisões. Ele fala sobre o fantástico no viver, no mistério que envolve toda a humanidade, porém se diz mais pessimista do que otimista. Ele acredita mais em Deus do que na humanidade, mas já que uma parte da humanidade parece pertencer a Deus, ele acredita na humanidade. Acredito em seu pensamento. Ele disse que se quisermos fazer bem para a humanidade, precisamos ser mais fortes do que as nossas emoções. È como se elas fossem as culpadas de nossas instabilidades, que conquistando-as podemos ser mais equilibrados. Mas isso poderia levar também a perda do poder de nos apaixonarmos. A verdade é que tudo no mundo é arriscado, viver é arriscado, então vamos ao menos tentar. Deus está por trás de tudo, existe o livre arbítrio, mas também existe o destino. Os dois andam juntos, e Deus é esse famoso escritor escrevendo a história de nossas vidas, conduzindo-as a um desfecho, a um significado que não morre, nem fenece, um significado eterno.

sexta-feira, outubro 28, 2005

O feminino como inspiração


Pensei em um presente para comprar para uma amiga. Alguém com afinidades. Pensei em diários. Vi dois na livraria que particularmente me interessaram: Diário de Sylvia Plath e Frida Kahlo. O primeiro de uma poetisa famosa e o segundo de uma artista plástica. São duas artistas que certamente viveram intensamente. São duas artistas que não tiveram medo de se expressar. Suas idiossincrasias são visivelmente profundas e relatadas com paixão. Gosto de ler sobre mulheres fortes, mas que na realidade eram a fragilidade em pessoa. São ambigüidades irreconciliáveis. São dualidades que confrontam-se. Virginia Woolf por exemplo, uma autora mundialmente conhecida, escritora de muitos livros, feminista convicta, tinha um pai autoritário e machista, viveu defendendo direitos das mulheres, e como essas deveriam construir seu próprio pensamento a respeito do mundo, como elas deveriam valorizar sua obra intelectual e buscar refúgio nela. No final suicidou-se. Clarice disse que o terrível dever é ir até o fim, não gosta de comparar-se com Virginia, embora o fluxo de pensamento seja um ponto em comum nas duas artistas. Sylvia Plath teve o infortúnio de apaixonar-se por um homem que ofuscou seu brilho e no final abandonou-a, isso foi fonte de angústias, mas também fonte de criação de seu último livro “Ariel”. Frida kahlo, sofreu fisicamente após um acidente bem retratado no filme que fala sobre sua vida. Imobilizada não deixou de criar, colocando nas telas suas mais íntimas revoltas. O homem de sua vida ,Diego, parece ter tido um papel importante na sua vida. São mulheres interessantes, intelectuais, tinham especificidades e distinções que as faziam especiais. De um modo ou outro somos feitos de identificações, formas de olhar, formas de ver, formas de ouvir. Identifico-me com mulheres que foram ou são famosas, que tem visibilidade. Uma atriz: Isabelle Huppert, famosíssima, lindíssima, talentosíssima. De uma fragilidade que dá pena. Simultaneamente a essa fragilidade, ela encontra na arte seu refúgio, sua vida, seu esforço está totalmente voltado para aquela forma. Apesar de suas premiações, as vezes sente-se vazia, não gosta de si mesma, como? Uma mulher com esse talento deveria agradecer aos céus pelo seu dom. Mas ser atriz como ela diz é aparecer para desaparecer, a verdade é que ela quer ser invisível, e nos papéis há o esconder-se essencial, há o mover-se para um lugar aconchegado onde não é visível, onde Isabelle não existe. È isso, é uma vontade de desaparecimento, de viver o insondável, que é não ter a si. O inefável, é o que não se exprime, aquilo que é matéria do impossível, e como ela sabe disso! Identificações não me fazem ser nenhuma das mulheres que admiro, mas tem o papel de tentar ser pelo menos um pouco do que vejo nelas. Quando vejo um filme ou leio um livro de alguém que consegue expressar-se, nossa, como isso me deixa indiscutivelmente embevecida. Fico literalmente devorando cada palavra, cada frase, cada gesto. Como ela conseguiu? Estudar o contexto histórico de tais mulheres me faz refletir.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Sob o sol de Toscana


Entendi. Ela não está mais aqui, quero dizer, aquela que pensava estar. O olhar esclarecido tem um sabor diferente, talvez de uma mistura estranha e sonhadora. Talvez eu me finde mais rapidamente que o imaginado, talvez quem esteja a viver seja um estrondoso e paradoxalmente silencioso ser em espera absolutamente eterna por soluções. Percebi talvez tardiamente que a construção é lenta. È extremamente demorada. Sinto falta do que perdi, embora soubesse desde o início que seria assim. Faz-me falta o que não consegui perpetuar, como se a alegria fosse uma borboleta esvoaçante, solitariamente voando por sobre o céu de luz. Escrever é procurar temáticas variáveis, distintas entre si, é a busca incessante por um aperfeiçoar-se que nunca está completo. Pensa-se ser ainda uma figura folheada a ouro, querendo reluzir um brilho que não é seu, espera-se que o brilho continue reluzente durante a procura por mais ouro, para recobri-la ainda mais com um falso sol. Enfeita-se a jóia com uma máscara e ela aparenta o ouro. Os olhos alheios olham o retrato bem arrumado da jóia inautêntica e a atribuem um valor alto. A jóia consciente de sua viagem temporária pelo mundo dos seus admiradores, tenta reformular o provisório, e essa reconstrução de sua folhagem custa-lhe caro. Movimentar-se por sobre areias da memória é um perigo doloroso.
O revolto mar nem sempre apazigua, verdadeiramente as palavras, efêmeras letras mortas, não suavizam como as borbulhas das ondas na areia. São sonoramente multifacetadas, são, certamente apáticas a quem as ouve, o ouvido como símbolo último da verdade.
O amor soa como uma afinação de duas solidões irreconciliáveis, o casar-se é um separar-se inevitável. Diante de duas esferas centradas em si mesmas, tenta-se um elo profundo, um elo de alegria. Lentamente a dor inventa-se por entre as alegrias e envolve-as com um ar desamparado. Abandonar-se a existência, deixar-se levar pelas brisas sentimentais, perigo à vista. Comedidos, vã prosa lírica, repentinamente sozinhos. Sonolência obliqua, cantos noturnos. Enchi-me de cordões que me separam do amor.
AS tentativas de ir são perpassadas por desistências mornas. As tentativas como fogo consumindo-se, a fumaça da experiência levando pequenas fagulhas de ânimo. Calorosamente em cadências. Friamente em neblinas, névoas a recobrir as primaveras do porvir. Ahhh...as primaveras e verões que não viverei, esses que me importam saudaram-me cuidadosos de si, um adeus à tremeluzente música do porvir. Quero os cantos de volta, por mais que eles não sejam meus, quero os móveis de volta. Conturbações são sanados pelo querer indistinto. Literariamente envolvo-me nas fábulas como salvação, entro nas histórias como personagem, reinventando os finais tristes e mortais, dando-lhe significado diverso. Quero-as todas. As sementes que plantei . Não como essas minúsculas, mas as árvores, frondosos presentes, as árvores que deveriam estar grandes. Quero-as todas ardentemente, quero-as como promessa. Como alento. Acalento sorrisos findos, como se esses ainda fossem alegremente enviados do paraíso.