Os pequenos sapatos

Shamel era uma mulher cheia de memórias. Gostava de lembrar. E lembrar era seu verdadeiro passa tempo, não apenas um passa tempo daqueles que se passa apenas alguns momentos do dia relembrando, mas pode-se dizer que toda a sua vida era uma vida de lembranças. Era uma vida do passado. Quando criança, dizia que seria professora, colocava os criados mudos em posição de sala de aula, e ficara a frente tentando ensinar os “alunos” a aprender matemática. Hoje ela não era professora,mas todos quando a viam, achavam que sua profissão só poderia ser essa, já que toda a sua constituição física dizia isso. Usava óculos, e parecia bem comportada. Suas roupas cobriam todo o corpo magro, e quase não usava apetrechos de vaidade. Era simples e introspectiva, e só falava quando alguém fazia alguma pergunta a ela.
Elegia memórias dentro do grande rol de sua infância e juventude. Algumas eram lembranças que não valiam a pena, então ela simplesmente se recusava a fazer delas algo de especial. Mas outras, eram a essência de tudo que se tornara. Quando era criança, sentia uma alegria infindável, que poderia se transformar em algo de belo, se soubesse como perpetuá-la. Suas idas a casa da avó era o que ficou de mais vívido, ela lembrava de uma banheira branca que ficava no banheiro, como era bom enchê-la e tomar banho nela! Era como se a transportassem para outro mundo, um mundo de sonho. Ela se via rodeada de amas, que faziam sempre a sua vontade, e ela era a madame que não precisava fazer nada, só ficar cheirosa e bonita. O banheiro ficava na parte superior da casa, depois de uma escadaria vermelha, que dava à casa um ar de arcaísmo. Todas as suas memórias pareciam antiguidades. Cada uma delas como um móvel da casa, uma cadeira, um sofá, uma cortina, todos com uma história para contar. Eram móveis empoeirados, as teias de aranha estavam por toda parte, e ela passava por cada um com um vela, tentando tirar o pó e ver finalmente o material de que a alma é feita.
Seu avô era sapateiro e sua avó costureira. Naquele tempo, era comum fazer roupas por encomenda e concertar sapatos. O cheiro da sapataria ainda estava em suas narinas reminiscentes, e a textura dos vestidos ainda nas suas mãos. Seu avô usava uma estrutura onde fixava os sapatos, todos empilhados em uma mesa, havia algumas máquinas e muitas borrachas que eram cortadas no formato do pé. Ela sabia intuitivamente que aquele ofício era diferente, e a mão de obra, para ela, era como uma especialidade para pessoas que acreditam no concerto das coisas. Ela imaginava porque as pessoas não jogavam fora os sapatos, talvez velhos, talvez com as correias gastas. Porque elas levavam a um sapateiro. Porque a maioria dos sapatos que ela via, eram gastos, como se já os tivessem usado exaustivamente, e ainda acreditavam no concerto, na ressurreição dos sapatos. Como se aquilo fosse um aprendizado para si, em que a vida poderia ser gasta, mas sempre haveria um concerto a ser feito, e para isso era necessário um sapateiro.